O som contínuo de teclas é a única coisa que pode ser ouvida no escritório. Um homem pode ser visto, teclando de forma solitária em um escritório de porte considerável, com diversos cubículos vazios. É depois do horário de trabalho, e ele é o único que permaneceu por ali.
O nome deste homem é Rodrik. Ele é um novato por ali, e está nos seus primeiros dias de trabalho. O último a cumprir o cargo dele pediu demissão, e não foi um cara muito legal. Deixou pilhas e pilhas de trabalho incompleto, que precisa ser terminado o mais rápido o possível.
Rodrik tecla em meio ao silêncio, encarando planilhas e arquivos de texto, montando relatórios e lutando contra o cansaço. Se ele quer subir de cargo rapidamente nesta empresa, terá que provar o seu valor logo de início, e essa é a oportunidade perfeita que não há opção melhor que ele para este serviço.
Seu corpo, no entanto, não está colaborando. Ele consegue sentir seus olhos pesando e os pisca, tentando afastar o sono. No entanto, suas pálpebras lhe pregam uma peça e se fecham por alguns segundos.
Ele se desperta de seu pequeno transe sonolento ao ouvir um som alto e estridente. Rodrik rapidamente se levanta da cadeira onde está sentado, que desliza para longe dele e se choca contra um gaveteiro de metal. A comoção é o suficiente para acordá-lo de vez, com o coração quase saindo pela sua boca.
O homem assustado olha ao redor e se questiona se ele realmente ouviu o que pensou ter ouvido. Talvez tenha sido só um delírio. Um pequeno pesadelo, criado pela sua mente para acordá-lo.
Ainda sem se sentar, ele pega sua xícara de café e a leva até a boca, apenas para não encontrar líquido nenhum lá dentro.
– Droga… – ele murmura para si mesmo e começa a se arrastar na direção da copa. Felizmente, a copa fica no mesmo andar onde ele trabalha, então ele não precisará andar muito para preparar um café.
No meio do caminho ele deixa sua caneca vazia sobre uma mesa desocupada e faz um desvio rápido para ir até o banheiro. Lá dentro, ele lava o rosto e se olha no espelho.
O banheiro masculino não é nada demais. Três mictórios adjacentes um do outro e duas divisórias sanitárias ficam frente a frente, e ao lado estão as três pias, das quais uma está quebrada e sua torneira não jorra água.
Rodrik se encara no espelho. Sua camisa social bege está com algumas pequenas manchas de café na altura do peito, tão pequenas e imperceptíveis que alguém só perceberia caso encarasse ele por um bom tempo. Seus olhos estão fundos e com olheiras, levemente avermelhados de tanto olhar para a tela de um computador. Suas orelhas de el’dorei estão levemente amassadas e avermelhadas, de tanto usar o fone de ouvidos com microfone fornecido pela sua empresa, para que ele possa realizar ligações e atender clientes. Embora ele estivesse completando 28 anos no próximo mês, o esforço está drenando sua juventude rápido.
– Será que todo esse trabalho realmente vale a pena? – ele questiona para si mesmo antes de ouvir um outro som. Desta vez o som não foi tão estrondoso, e se pareceu mais com o de uma cadeira se arrastando.
Rodrik se afasta do espelho e sai do banheiro, retornando até sua caneca vazia. Lá, ele olha de um lado para o outro, procurando a origem do som. Os corredores ainda estão escuros, e aparentemente vazios. Não há nenhum movimento dentro dos cubículos do escritório. Não que ele consiga ver, pelo menos.
Ele pega a sua caneca e continua indo até a copa. Talvez ele não esteja sozinho ali, afinal. Algum colaborador deve ter decidido fazer hora extra também. Com um suspiro, ele vira a última esquina no caminho até a tão sonhada máquina de café expresso.
Rodrik congela no lugar. Uma sensação como a de uma faca de gelo raspando pela sua coluna cervical passa por ele. Ele está encarando uma figura sentada de costas para ele. A figura possui dois chifres e está vestida de maneira formal, adequada para o local de trabalho. Seus longos cabelos negros como carvão escorrem por suas costas. Na frente desta figura há uma pequena mesa com algumas xícaras sobre ela. Há xícaras o suficiente para três pessoas, mas só esta figura pode ser vista, e ela está utilizando a única cadeira por ali. Ela encara a cidade e o céu noturno através de uma janela.
Após raciocinar o que está vendo, ele solta um segundo suspiro. Agora, de alívio. A garota sentada na cadeira ouve este som, e move sua cabeça para olhar para ele. Seu rosto é bonito, com vibrantes olhos azuis como o céu. No entanto, ela parece cansada. Em uma inspeção mais minuciosa, é percebido que sua roupa está empoeirada e abarrotada. Seus olhos estão tão fundos quanto os de Rodrik. Ela é claramente uma diabolus, percebe Rodrik, e sua idade dificilmente seria entregue pela sua aparência.
Ele se aproxima da máquina de café, que fica ao lado de onde a garota está sentada, no lado oposto da janela, e diz: – Me desculpe, senhorita. Não esperava ver alguém por aqui.
A mulher não expressa nenhuma reação.
– Ah, desculpe. Eu não queria ser parecer mal educado nem nada do tipo – Ela ainda não expressa nenhuma reação, e seus olhos observam Rodrik com um interesse vazio – Meu nome é Rodrik, por sinal. Você também trabalha por aqui? – continua ele, tentando arrancar alguma reação dela.
“Seu burro… É claro que ela trabalha por aqui. Se não, o que ela estaria fazendo aqui?”, ele pensa consigo mesmo, e desvia o olhar da garota. É claro que ela não daria nenhuma atenção para ele.
– Milena.
Rodrik se surpreende ao ouvir a voz dela, e olha em sua direção novamente.
– Meu nome é Milena. Eu trabalho na área financeira – ela diz, olhando para o rapaz surpreendido.
– Poxa, que legal! Eu sempre quis aprender finanças, mas nunca me dei bem com isso – ele responde Milena. Isso não era verdade, ele está apenas tentando puxar assunto.
– Sua camisa. Ela está suja – diz a garota.
– O que? – ele parece ter sido pego desprevenido pelo comentário dela, e olha para baixo para ver as pequenas gotas de café seco em sua camisa.
– Sua camisa. Ela está suja – repete a garota.
– Sim, acho que deixei um pouco de café pingar ali mais cedo. Você também está fazendo hora extra, ou ficou sem carona para ir embora? – Rodrik pergunta, tentando descobrir mais sobre Milena.
– Ir embora… – Milena se levanta abruptamente – Eu preciso ir embora.
Ela se levanta da cadeira e passa por ele, abandonando em cima da mesa as três xícaras usadas. Rodrik encara as costas dela enquanto ela caminha em direção aos corredores escuros.
***
No outro dia, durante o horário de trabalho, Rodrik questiona alguns colegas e até mesmo fica atento para o caso de ver Milena, mas sem sucesso nisso. Seus colegas contaram que sabem quem ela é, mas que ela não é vista pelo escritório há alguns dias.
O rapaz fica extremamente confuso. Qual será o motivo de ela não aparecer por ali durante o horário de trabalho? Será que está tudo bem com ela? Ele resolve encontrar suas próprias respostas, e decide que ficará até mais tarde hoje também.
O escurecer do dia parece durar pelo menos duas tardes, enquanto Rodrik aguarda ansiosamente por ele. Quando este chega, ele se sente confuso e com um pouco de medo. Enquanto ele observa seus colegas irem embora, um por um, ele questiona se realmente deveria estar fazendo isso.
A ideia assusta ele um pouco. Sua mente navega entra dezenas de possibilidades do que pode estar ocorrendo com a Milena, desde apenas horários de trabalho conflitantes com a vida pessoal até histórias de assassinos em série.
O seu horário de trabalho oficial termina, e a noite começa. Com ela, vem o silêncio total no escritório. Rodrik está ansioso para procurar por Milena, mas ele decide aguardar um pouco. Ele também não quer parecer desesperado por ela.
O silêncio é quebrado por um som de cadeira se arrastando. Ele imediatamente para de digitar e ergue sua cabeça. “É ela, só pode ser ela”, ele pensa consigo mesmo.
Rodrik se levanta e começa a caminhar em direção a cozinha, onde encontrou ela da última vez, cruzando os corredores escuros e silenciosos. Ao chegar lá, seu coração falha uma batida ao ver Milena sentada na mesma cadeira, sem xícaras de café dessa vez.
– Ah, oi! Você por aqui de novo – ele diz, se colocando ao lado da máquina de café.
A garota não esboça nenhuma reação, nem mesmo olha para ele. Isso deixa ele um pouco desconfortável mas, com um suspiro, ele cria coragem para se aproximar dela com sua xícara em mãos e arrasta uma cadeira para o outro lado da mesa, se sentando na frente de Milena. À sua esquerda, a janela revela a visão para o cenário urbano.
Agora que ele está de frente para ela, ele percebe que seus olhos estão ainda mais profundos, como se ela não tivesse dormido muito, ou sequer dormido, na última noite. Seus olhos estão extremamente avermelhados, sua roupa ainda está empoeirada e suas bochechas parecem estar magras. Os olhos dela ainda possuem o mesmo brilho azulado de vida, mas agora estão vidrados no mundo lá fora, e nem sequer pairam sobre Rodrik.
– Desculpe se estou te incomodando, mas é que realmente estou preocupado com você. Eu conversei com o pessoal mais cedo, e eles me disseram que você não aparece por aqui faz um tempo.
Milena continua imóvel, sem reagir a nenhuma de suas palavras. Ela não parece nem estar piscando, embora seu peito ainda se infle com uma respiração pausada e inconstante.
Rodrik se sente intimidado pela falta de reação dela. Ela não parece estar afim de conversar. Talvez esteja passando por um momento difícil. “Quem sabe ela está de luto?”, ele se questiona em sua cabeça.
– Bem, desculpe por qualquer coisa. Caso você precise de mim, estarei nos cubículos próximo do setor comercial – ele se levanta e começa a se afastar, caminhando derrotado em direção ao seu computador. Antes de virar a esquina, ele dá uma última olhada para trás.
Os cabelos de Milena estão esvoaçando de leve. Ele estava sendo ali até agora, e não sentiu nenhum vento entrando no cômodo. “Ela olhou para mim?”. Esse pensamento paira pela sua mente por alguns segundos, e ele sente um calafrio na espinha, que sobe até sua nuca.
Rodrik se desfaz desses devaneios e retoma a caminhar em direção ao seu cubículo. Lá, ele volta a cumprir suas atividades administrativas.
Um pouco de tempo se passa, e ele decide pegar mais café. Rodrik agarra a alça da sua caneca e se levanta da sua cadeira. Ele quase se esqueceu de que Milena ainda podia estar por ali, se não fosse por encontrar a presença dela imediatamente atrás dele ao se virar em direção ao corredor.
O rapaz se assusta e dá um grito. Ele e a caneca caem no chão. Milena estava parada logo atrás de sua cadeira, o encarando. Ele quase se esbarrou nela ao se levantar, mas aogra está caído em um amontoado de cacos de porcelana. Rodrik levanta a cabeça para olhar na direção de Milena.
– Você está b… – antes de terminar a frase, ele a vê saindo dali, entrando em um corredor e saindo de seu campo de visão.
Rodrik apenas fica em choque por um tempo, olhando para o lugar onde a viu pela última vez.
“Por quanto tempo ela estava atrás de mim?”
“O que aconteceu para ela estar agindo tão estranho?”
“Será que ela me acha um completo idiota?”
Todos estes são pensamentos que passam pela cabeça dele, antes de ele finalmente recobrar a consciência e limpar a bagunça que fez. O dia já foi intenso o suficiente, e ele decide ir para casa. Antes disso, ele vasculha os escritórios e a cozinha uma última vez, procurando por Milena, mas não tem sucesso.
Ele pega suas coisas e se dirige para a saída. Na portaria, ele cumprimenta o porteiro e faz uma pergunta para ele:
– Boa noite, senhor. Por acaso, há alguma garota entrando ou saindo do prédio durante as suas rondas noturnas?
– Boa noite, jovem. Não. A última pessoa a sair do prédio é sempre você – responde o porteiro.
Essa resposta gela Rodrik, e o dá uma sensação estranha.
– Certo. Obrigado, amigo. Bom serviço para você – ele diz antes de ir até seu carro. Com uma última olhada para o prédio onde estava, ele jura ter visto uma figura observando-o de uma das janelas.
***
Dois dias depois, ele está novamente no escritório. Ele também trabalhou na última noite após o seu horário de serviço, mas não encontrou nenhum sinal de Milena. Ele a procurou em todos os lugares que ele conhecia por ali, com exceção do banheiro feminino, mas não a encontrou por nada.
Neste momento, ele está sentado na cadeira onde encontrou ela pela primeira vez. A sua caneca de café repousa intocada sobre a mesa, enquanto ele fita a cidade além da janela. Seu olhar é apenas interrompido por uma rápida checagem de seus arredores, para garantir que ela não o pegue de surpresa de novo.
Rodrik está legitimamente preocupado com Milena. Ele tentou falar com os seus colegas e até mesmo com os Recursos Humanos sobre ela, mas ninguém deu muita trela para o que ele estava falando. É claro que se duvidassem dele, as câmeras poderiam provar de que ele estava falando a verdade, mas ninguém pareceu se importar o suficiente para isso.
Ele dá um suspiro e deita sua cabeça sobre a superfície da madeira da mesa. Ele está cansado e nervoso com toda essa situação, e não pretende ficar até muito mais tarde por ali. Seus olhos pesam, e ele se sente sonolento.
Ele abre os olhos novamente ao ouvir um som pelo escritório, de algo se movendo. Talvez passos? Ele está desorientado e, ao checar seu celular, percebe que mais ou menos vinte minutos se passaram desde a última vez que ele olhou o horário. Ele cochilou.
Rodrik se ergue da cadeira e foca sua atenção no barulho que ouviu. Seria Milena?
O rapaz volta a explorar o escritório, novamente buscando por traços dela, mas não encontra nada. “Talvez dessa vez realmente tenha apenas sido uma alucinação, ou algo assim. Estou muito cansado, eu deveria ir para casa.”
E assim, ele faz. Ele pega suas coisas em seu cubículo e, com olhares desconfiados para cada sombra, sai dali. Enquanto desce as escadas com pouca iluminação, ele tropeça em algo e rola alguns degraus abaixo. Dolorido e desorientado, ele fica surpreso ao perceber que o que o fez cair não foi algo, e sim alguém. Há um corpo estarrado na escada, o qual ele não percebeu ao descer de forma apressada.
Se aproximando do corpo e tocando-o, ele percebe que é o porteiro que viu duas noites atrás. Ele está com o olhar vidrado em um ponto aleatório acima deles, mas parece vivo e não está com nenhum ferimento aparente.
– Você está bem?! – exclama Rodrik para ele, de forma interrogativa – Cara, você não parece nada bem. Eu vou ligar para alguém vir aqui te ajudar.
O rapaz pega seu celular e tenta desbloquear a tela, mas sem sucesso. A tela está trincada, e ele se recusa a iniciar. O aparelho provavelmente quebrou enquanto Rodrik descia as escadas rolando. Instintivamente, ele procura o aparelho celular do porteiro em seus bolsos, mas não encontra nada além de uma carteira.
– Merda! – ele xinga para o ar – Certo. Fica aqui, tá bom? Eu vou procurar ajuda.
E assim, ele sai do prédio, indo em direção a portaria. Lá, deve haver pelo menos um celular ou telefone que ele possa usar. Ao chegar lá, ele encontra um telefone fixo. Antes que ele possa discar um número, ele ouve passos atrás de si.
Rodrik congela. Ele se vira lentamente para trás, para confrontar Milena.
Ela está de pé, imóvel, na entrada da portaria, de onde Rodrik veio. A pouca iluminação permite ele perceber que a condição preocupante dela se agravou mais ainda. Seus olhos estão extremamente fundos e ela parece magra. Mas o pior é que aparentemente, o brilho azul de seus olhos, outrora lindos, agora estão apagados e mortos. Ele sente um leve odor de putridão vindo dela.
– M-Milena? O que você está fazendo aqui? – ele pergunta. Imediatamente, ela começa a andar na direção dele. Seu caminhar é incoordenado e irregular, como se fosse uma marionete.
Ao ver isso, Rodrik se assusta e agarra a primeira coisa que encontra para se defender: um guarda-chuva. Quando ela entra em seu alcance, ele brande o guarda-chuva e acerta ele com toda a força na cabeça de Milena. O guarda-chuva se entorta, e Milena parece pouco abalada pelo golpe, e agarra os pulsos de Rodrik com suas mãos frias. Seu aperto é forte, e Rodrik a circulação de suas mãos sendo interrompidas.
– P-por quê? – Rodrik a questiona, incapaz de fugir. Seu olhar completamente aterrorizado encara os olhos sem vida de Milena.
– D-desculpe – ela responde, com uma voz rouca e ríspida, de forma pausada – N-não c-consigo c-controlar…
Rodrik arregala seus olhos enquanto vê a boca de Milena se abrindo em um ângulo doloroso, enquanto abre espaço para dezenas de finos tentáculos saírem de lá de dentro, acompanhados por uma criatura semelhante à uma lagarta. Os tentáculos saem da cabeça desta lagarta, que é do tamanho de uma lata de refrigerante. As pernas da lagarta são dedos humanos, os quais forçam a mandíbula de Milena para abaixo, e permitem que a criatura horrorosa se esprema para fora. Parece que, de algum jeito, ela está conectada ao resto do crânio de Milena. No centro da cabeça da lagarta e em meio aos tentáculos, há uma espécie de boca circular.
Os tentáculos finos seguram a cabeça de Rodrik enquanto ele luta para se liberar dos dedos de aço em volta de seus pulsos. Seus gritos não servem de nada, e são rapidamente suprimidos quando a lagarta força caminho para dentro de sua boca e expele algo lá dentro.
A dor é terrível. Uma queimação em sua boca, que evolui para a sensação de mil aranhas descendo por sua garganta, invadindo seu sistema respiratório e digestivo. A última visão de Rodrik antes de perder para a dor são os olhos mortos de Milena, que o encaram sem expressão.
2 comentários
Eu amei cada segundo dessa história! Perfeita! Uma mistura intensa de tensão com momentos de suspense. Simplesmente consegue prender do inicio ao fim, vale super a pena a leitura!
Conto sensacional!