Era uma tarde fria de inverno, nevava lá fora como ocorria em mais da metade do tempo na cidade. Beth estava sozinha na livraria, o jovem garoto de longos cabelos vermelhos acabara de ir embora deixando para trás a costumeira bagunça de sempre. O jovem de nome Akashi havia chegado na cidade há pouco menos de 1 mês, e estava estranhamente interessado na coleção de livros do senhor T.


Beth era uma garota loira, de cabelos cacheados curtos, e longas orelhas pontudas. Alta para uma mulher, era o que o senhor T sempre dizia. Ela cuidava da livraria do antissocial senhor T há mais de 2 anos, e sempre foi muito bem tratada. Adorava trabalhar lá, recebia um salário digno e sempre tinha sossego, podia ficar perto dos livros que tanto amava, e devorá-los sempre que tinha tempo livre nos intervalos de limpeza e organização.


Algumas horas depois de ficar sozinha na livraria, Beth organizou toda a bagunça que ficou acumulada durante o dia. E finalmente se viu em paz, aconchegada em uma poltrona azul-calcinha, com uma pequena mesa de madeira escura ao seu lado e uma grande caneca de café repousada sobre ela. A jovem garota pega seu livro de capa dura da coleção, “Boots, o Jovem Espião”, uma edição de colecionador, e começa a ler se deliciando com a obra como costuma fazer.


O tempo passa de uma forma estranha quando estamos focados em uma atividade, isso é algo que Beth sabia, e sabia melhor ainda que com ela, quando estava lendo, a realidade parecia alterada, acelerada, como se o tempo não existisse, e fosse na verdade todo consumido pelo livro e pela história que este conta. Agora, Beth se assustou quando ouviu o despertador que ficava no balcão da loja tocando, o que significava que já eram 8:00 e estava na hora de abrir. Não é a primeira vez que a jovem loira passa a madrugada inteira lendo e perde a noção do tempo. Porém, sempre que isso acontecia, diferente do que a maioria das pessoas pensaria, ela se sentia bem, completa, feliz! Esse tipo de coisa vinha acontecendo cada vez mais nos últimos tempos, e isso não incomodava a garota. Pelo contrário, fazia ela se sentir mais viva do que nunca.


Beth abriu a livraria, passou o café para colocar a garrafa cheinha com café quente em frente ao balcão de entrada. Abriu o pote de biscoitos para que os clientes que chegassem pudessem consumi-los, e por fim ligou o rádio com uma suave musica tocando e ambientando a livraria que tinha um doce cheiro de biscoitos com um delicioso aroma de café fresco.


Os primeiros clientes do dia chegaram, e saíram. O movimento estava como sempre, tranquilo. O garoto com os longos fios de cabelos vermelhos chegou no horário de sempre, às 11:34 da manhã. Beth já havia decorado seu horário de chegada, afinal era o horário em que a livraria estava mais vazia. Quem viria em uma livraria no horário de almoço? O garoto pegou alguns livros pelas estantes e espalhou os mesmos pela mesa e começou a folhear. Era um comportamento interessante, Beth achava. Ele folheava as obras de forma rápida, para ela parecia impossível que ele realmente estivesse lendo tudo que folheava, era impossível que ele estivesse absorvendo algo e isso a incomodava.


Akashi já estava há um mês observando aquela garota na livraria, a cada dia que voltava lá tinha mais certeza que a denúncia anônima que recebeu enquanto estava passeando nas montanhas estava certa. Algo estava errado com ela. A cada madrugada a garota parecia mais exausta, com os olhos mais fundos e a expressão mais desgastada. Ela estava lendo o mesmo livro de capa dura sem nada escrito na mesma há mais de um mês, passava a madrugada toda com ele nas mãos sentada em uma poltrona de olhos vidrados e nunca o terminava. A garota parecia feliz, mas seu corpo dizia o contrário.


O jovem Caçador tentou fazer a garota mudar o foco, a cada dia que ia lá deixava mais bagunça, tentava fazer com que ela ficasse cansada e desistisse de ler por pelo menos uma noite, mas nada adiantava. Ela estava decidida a ler e pelo que parecia nada mudaria isso. Akashi não sabia como abordar a situação, nunca tinha visto nada parecido com isso e achava que poderia ser realmente algo extremamente novo.


Mais uma noite chegava e mais uma noite Akashi se aconchegava em seu apartamento alugado do outro lado da rua ao qual a livraria estava localizada. Sentado na poltrona em frente a janela, o Caçador observava Beth dentro da livraria. A garota se movia de forma lenta e angulada, como se fizesse tudo de forma automática quase robótica. Após pouco mais de 1 hora, a garota terminava seus afazeres e se acomodava com seu livro na poltrona azul no fundo da loja.


O sono foi tomando conta do rapaz, enquanto observava a garota ler, que não fazia menção nenhuma de que pretendia parar. Os longos cabelos vermelhos dele voavam ao vendo que vinha da janela, e seus olhos davam piscadas pesadas. Quando do outro lado da rua Beth se sentia completamente abraçada pela história de Boots, se sentia que estava sendo levada, conduzida para um mundo maravilhoso, cheio de aventuras e segredos que ela iria descobrir.


Akashi tomou um susto e sobressaltou na poltrona, ele pulou através da janela de vidro de uma só vez, deixando seu longo bastão de metal ajudar suas fortes pernas a amortecerem sua queda do segundo andar do pequeno prédio. O Caçador havia visto, o motivo de suas suspeitas do último mês. Curtos tentáculos com varias ventosas saindo brutalmente das páginas dos livros, e abraçando o rosto da garota, que estava curvada para frente, com metade de sua face já dentro das páginas apodrecidas do livro.

O caçador quebrou o vidro da frente da livraria com uma pancada, estilhaçando a vidraça. Correu até o fundo da livraria passando por entre as estantes com o máximo de velocidade que conseguiu. Chegando no fundo da loja encontrou o livro fechado em cima da poltrona e nenhum sinal da garota que há poucos segundo atrás esteve ali. Abalado, Akashi colocou as mãos sobre as coxas, respirando. No fundo da sua mente começou a ouvir uma voz, arrastada e trêmula, como se no lugar das cordas vocais a persona, ou seja lá o que fosse, falasse com ele através de pedaços de carnes curvos e esburacados. A voz chamava Akashi para em direção ao livro, para que ele o tocasse. Que apenas lendo o livro o jovem seria capaz de entender o que aconteceu ali, que se o Caçador aceitasse ler esta obra ele poderia até resgatar a garota.

Esses foram motivos suficientes para o garoto, que estendeu a mão em direção a obra de capa clara, e tocou o livro com as pontas dos dedos. Foi o suficiente para começar a compreender o que esperava por ele em frente. E pode parecer que foi simplesmente uma burrice. Porém ele sabia que estava amaldiçoado, que seria caçado, que estava fadado à morte. Mas foi um risco que ele estava disposto à correr, afinal, a vida dela valia muito mais que a dele. Ela era a Devoradora de Livros.

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